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11 de jul. de 2009

Sebastião: sangue preto – parte final

sebastiao_vampiro

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Leia a parte 9.

– Eu era só um garoto de dez anos quando viajei à Europa com meus pais – em meio aos delírios, ouvi a voz de Lúcio conversando serenamente comigo – minha mãe era uma das mulheres mais lindas que já existiram e meu pai um austero rico senhor. Quando chegamos em Lisboa nossa família chamava a atenção dos burgueses europeus. Eu me chamava Pedro. Nunca gostei do meu nome. Era o primogênito de Antônio Maria, que na época gozava de uma das maiores plantações de cana do império. Seria tudo meu, se não fosse aquela criatura de branco. Aquela linda criatura de branco. A lua estava cheia, quando ela sussurrou no meu ouvido, na saída do teatro. Segurando as mãos dos meus pais, eu disse que ela havia falado comigo. Eles riram, falaram algo sobre um companheiro imaginário. Estávamos no restaurante mais rico da cidade. Meus irmãos mais novos, Jorge e Rita, dormiam em casa. Era quase meia noite, quando sai do restaurante com outra criança. Eu disse aos meus pais que ia até a rua brincar, mas, tanto eu quanto aquela outra criança, estávamos sendo chamados por aquela bela dama.

Estava tão grogue, que detalhes como Lúcio dizer que se chamara Pedro e que era o filho mais velho de Antônio Maria não me chamaram atenção. Eu começava a abrir os olhos. Na minha frente estava Lúcio, no meio das chamas da casa-grande, segurando em uma mão a cabeça decepada de Antônio Maria.

– Aquela dama me visitou algumas noites. A cada visita, eu mudava profundamente. A fome aumentava. A primeira morte que fiz foi a de Sansão, o cachorro que criávamos. Quando o vi, vivo na minha frente, pude sentir o calor de seu corpo. Meus pais achavam que um animal selvagem o havia atacado – Lúcio esboçou um breve sorriso – Eu não conseguia me manter acordado à luz do dia, evitava qualquer tipo de luz, por que ela feria meus olhos. Quando meu pai tentou me forçar a sair do quarto numa manhã, eu o agredi. Ele quis revidar, mas minha mãe não deixou. Naquela noite, ela dormiu no meu quarto para me proteger dele. Serenamente repousando ao meu lado, senti cada pulsação dela. Suas veias eram estradas por onde corriam luzes coloridas, iluminando seu corpo branco. Eu sentia muito frio, e apenas seu corpo poderia me aquecer. Eu queria estar dentro dela novamente. Eu queria o seu coração. – Lúcio interrompeu-se bruscamente – Foi a minha segunda morte. – no meio daquela face demoníaca, vi um brilho de tristeza em seus olhos – Meu pai me condenou. Meus irmãos eram tão novos que não entenderam o que havia acontecido. Foram dez anos em Portugal, sendo analisado por médicos, cientistas e religiosos de todas as estirpes. Vivia acorrentado. Trancafiado. Era alimentado com sangue de animais de rua. Até hoje não sei por que meu pai nunca me abandonou – Lúcio mexia de um lado a outro a cabeça do seu pai, que tinha os olhos terrivelmente virados – talvez por que lembrasse de como minha mãe tentou me proteger e da vida que ela deu por mim. Voltamos ao para cá. Meu pai acobertou os fatos, fantasiando sobre a morte precoce de seu herdeiro e sua esposa e o nascimento de um filho caçula que ele nunca teve. De que outra forma ele explicaria que seu filho mais velho tinha vinte anos, mas possuía o corpo de uma criança? Nessa terra, permaneci privado da liberdade. Tive como companhia apenas os velhos livros adquiridos na Europa por meu pai, muitos deles abordando sobre a minha condição. Eu li todos tentando compreender minha natureza. Mas ainda não sei nada. Agora posso ganhar o mundo e descobrir por mim mesmo. E você ganhou uma nova chance, negro. – disse, olhando para mim seriamente – Aconselho a procurar por tua nova essência assim como eu o farei.

Naquele momento passei as mãos pelas minhas costas, e notei que nem a moldura do quadro e nem o ferimento estavam mais lá. Quando olhei para frente novamente, Lúcio havia desaparecido entre as sombras. As chamas aumentavam. Eu tinha de sair dali. Fraquejando, corri novamente até a janela e pulei para fora da casa. Arrestei-me até o meio da mata. Não havia mais ninguém nos arredores da casa-grande. Talvez todos os jagunços estivessem mortos e todos os escravos tivessem fugido. Mais uma vez estava só.
Fraco, dei os primeiros passos ainda de pé, mas logo comecei a me arrastar no meio da vegetação ao redor da casa de engenho. Eu não sabia para onde estava indo, só queria encontrar alguém que pudesse me ajudar. Eu sentia fome. Minha pele ardia, num intenso calor. O dia estava amanhecendo, e por algum motivo aquilo se tornou ameaçador para mim. A cada minuto que passava, mesmo ainda sem a luz do sol, o calor tornava-se infernal. Instintivamente, parei em cima de uma porção de terra úmida sem vegetação e comecei a cavar. O tempo passava, o calor aumentava, e comecei a entrar dentro do buraco enquanto ainda o cavava. Em menos de uma hora, a cova já tinha quase o meu tamanho. Joguei-me nela e comecei a enterrar-me. Já estava quase completamente soterrado, quando puxei as últimas porções de terra que restavam para cobrir meu rosto e meu braço. Mesmo com quase um palmo de solo sob minha face, estranhamente não senti necessidade de respirar. O amanhecer ia se aproximando, e, mesmo debaixo da terra úmida, meu corpo começou a esquentar, como se eu estivesse em uma fogueira. Imaginei que iria morrer. A luz do início da manhã atravessava o solo barrento, quase me cegando. Desmaiei de dor.
Acordei com um barulho. A luz do sol não existia mais. Eu havia dormido durante todo o dia dentro daquela cova. Desenterrei-me e percebi que dois animais grandes campeavam próximo de mim. A fome que sentira antes de desmaiar ainda estava forte dentro de mim. Meus sentidos captavam com clareza o cheiro dos bichos e seus corações batendo. Preparei-me para emboscá-los. Espantei-me quando pensei consigo mesmo sobre o quão rapidamente me recuperei para me alimentar. A fome me guiava, quase me enlouquecendo.

Estava muito escuro. Mesmo assim, eu conseguia discernir os obstáculos da selva à minha frente com facilidade. Não podia ver com precisão minhas presas, mas sabia que podia atacá-los. Pulei sobre os dois com minhas mãos certeiras em seus pescoços. Perfurei a jugular de um deles com meus dentes. O sangue caiu por dentro da minha garganta, liberando uma incrível sensação de bem estar em mim. Foi quando ouvi algo:

– Socorro! Alguém nos ajude!

Era um grito humano. Uma mulher. Eu havia atacado dois seres humanos. Não conseguia ordenar a mim mesmo para que os soltasse. Continuei me alimentando daquele líquido quente, até sentir que ele ficava mais escasso. A outra caça tentava livrar-se da minha mão em seu pescoço. Era um jovem branco. Mesmo com toda a sua força, era impossível para ele mover um dedo meu que fosse. Quase como num instinto para que ele não se soltasse, apertei com mais força seu pescoço, que se esfarelou entre os meus dedos, como se eu apertasse uma barra de sabão. Tendo acabado o sangue da outra vítima, pulei sobre o peito do jovem rapaz, sugando toda a essência da vida que ainda lhe restava para dentro de mim.

Eu havia acabado com duas vidas humanas. Mas por quê? O que havia mudado em mim desde o encontro com Lúcio? Em que tipo de animal exatamente eu me transformara? Saciado, caí num choro efusivo e parti sem rumo, correndo para o meio do matagal.

FIM.
Texto por Zé Wellington.

Post-scriptum: o que você achou de Sebastião?

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