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2 de mai. de 2021

A bíblia de Luzia (Lista do Zé #34)

 

São muitas etapas para construir uma história... E hoje eu revelar uma das que eu mais gosto de fazer, que é escrever a "bíblia do projeto". Vem comigo?

Mas antes é importante dizer que meu mais novo trabalho, Luzia, já está disponível para venda!

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Sempre quando vou criar uma nova história, costumo fazer uma imersão no universo dos temas referentes a ela. Com Luzia não seria diferente. Dessa imersão surge, normalmente, um documento que norteia a construção do livro, que no roteiro para audiovisual chamam de “bíblia da história”. Pois bem, apresento a vocês a “Bíblia de Luzia”, escrita de mim para a desenhista Débora Santos, na intenção de complementar o roteiro que fiz para ela.
 
Essa é uma versão resumida. A original tem 20 páginas e bom... acho que seria um pouco demais para um texto no blog. Mantive aqui o que escrevi sobre o conceito geral da história e uma análise sobre as duas principais personagens (fiz para outros três personagens). Há spoilers, mas os coloquei em fundo preto (para ler, basta selecionar o texto ou copiar e colar no bloco de notas, mas recomendo só ler esses trechos depois que você ler a HQ ou o livro original). Antecipadamente peço perdão por não citar os autores originais de todos os textos que li na fase de pesquisa... Não costumo divulgar essa fase da minha criação, então não tive essa preocupação de anotar os nomes quando estava fazendo este documento. Se na época que montei esse material eu tivesse pensado que iria mostrar isso para outras pessoas, teria tomado o cuidado de anotar todas as referências. Enfim, meu principal objetivo aqui é mostrar para você um pouquinho dos bastidores do trabalho.


 

Conceito geral

Há uma passagem de Lúcia Miguel Pereira que tenta classificar Luzia-Homem como obra:

“Realista na forma, sem os tiques dos nossos naturalistas, talvez simbólico na concepção, sem ser simbolista, regionalista pelo tema, sem colocar o elemento local acima do humano, todas essas tendências ao mesmo passo se completando e se abrandando umas pelas outras, é difícil classificar este livro.”
 
Quando pensei pela primeira vez em Luzia-Homem desenhada como uma história em quadrinhos, comecei a refletir sobre como seria o estilo do desenho. O caminho mais óbvio que me vinha à mente era tentar entender o movimento literário ao qual ela fazia parte e buscar referências das artes visuais do mesmo movimento. O lugar onde LH é mais colocada na história literária é como obra naturalista-regionalista, com características realistas. No entanto, há uma certa polêmica quanto à essa classificação. O que se fala é que ela foi classificada assim obedecendo apenas a data de publicação. Mas, num dos trabalhos mais legais que li sobre LH (A pictórica em Luzia-Homem, do prof. José Leite de Oliveira Júnior), o autor defende que a obra seja classificada como impressionista.
 
Dei uma estudadinha sobre o impressionismo e achei muitas coisas legais, começando pelo conceito de que uma obra é uma impressão do momento, sintetizada na frase: quando você entra num rio pela segunda vez, ele já não é o mesmo que você conheceu na primeira (alguém importante disse isso, mas não anotei a referência). Visualmente, os principais pintores impressionistas são Monet, Manet, Renoir… Eu não acho que a gente deva levar esse estilo para o quadrinho (a não ser que você encontre uma forma confortável), mas achei interessante fazer esse preâmbulo, que de repente pode te inspirar de alguma forma.
 
Fora isso, quero manter algumas características do naturalismo, que tem uma visão mais crua da vida, especialmente quando falarmos da pobreza na história. Foi a pior seca que o nordeste já passou (1877-78-79), morriam 25.000 por ano no Ceará em decorrência dela (pra você ter uma ideia, Fortaleza tinha 30.000 habitantes na época). Os retirantes são um fenômeno maluco e que deixou malucos os governantes da época, chegando a haver campos de concentração para conter os pobres. Domingos Olímpio lança um olhar muitas vezes bem preconceituoso sobre essa massa de pessoas e ainda tem uma visão bem defensora do poder público. Percebe no romance original que ele não para de dizer como a Comissão de Socorros cuida dos pobres com sua esmola (que na verdade é um pagamento por um trabalho quase em condições de escravidão) ou que o julgamento do delegado e do promotor é justo? Domingos Olímpio era promotor público nessa época, então… De qualquer forma, quero aplicar uma visão mais real: vamos contar esse romance, mas, onde nos for possível, vamos também denunciar os descasos, respeitando (até onde for possível) a linha da história.
 
Voltando ao estilo, me veio a ideia maluca de trabalhar os cenários (quase sempre desérticos) a luz do impressionismo (com seus contornos difusos e pinceladas irregulares), mas quando aproximarmos dos personagens aplicarmos o naturalismo (evidenciando as rugas, ferimento, suor e sangue desse período complexo). Esse papo de movimento artístico me deu vontade de buscar algumas obras de artes (não só do impressionismo) para inspirar alguns quadros. Enfim, é só uma sugestão, beleza?

“Aquilo que não é ligeiramente disforme, parece insensível: disso decorre que a irregularidade, ou seja, o inesperado, a surpresa, o espanto são uma parte essencial e característica da beleza”.
Baudelaire, pintor impressionista
 
Filósofo em Meditação, Rembrandt - Luzia
Filósofo em Meditação, Rembrandt / Luzia

 

 Acho importante comentar com você alguns elementos relevantes nesta narrativa:

  • Luz - o nome de Luzia deriva de luz. O sol é parte importante da trama também.
  • Olhos - Santa Luzia é a padroeira da visão e tem em sua história uma relação com os olhos (eles são arrancados dela e servidos numa bandeja). Além disso, Luzia arranca o olho de Crapiúna no final do livro.
  • Cabelos - parte central do interesse por Luzia pelos homens. Ela constantemente os penteia, ela chega a os oferecer para conseguir dinheiro. Eles estão em destaque no final da história.
  • Cravo - a flor que Luzia recebe de Alexandre é também uma peça central, que inclusive marca o desenvolvimento da relação entre eles: 1) Luzia ganha os cravos; 2) Luzia devolve os cravos; 3) Alexandre traz os cravos de volta; 4) os cravos são trespassados pela faca de Crapíúna.
  • Julgamento - Domingos Olímpio era promotor, então a questão da justiça permeia toda a obra, seja diretamente (há um roubo e há intensa participação do delegado e do promotor para darem um final justo ao caso), bem como indiretamente (Luzia se sente sempre julgada pelos olhares dos outros).
  • Luzia-Homem como mito fundador de Sobral - é inegável a relação da personagem com a cidade. Entrevistei uma escritora sobralense [Carmélia Aragão, que acabou fazendo o posfácio da HQ] e ela me contou uma história de uma pessoa que ela conhecia ter relatado que sua avó tinha conhecido Luzia. Sabendo que se tratava de uma personagem fictícia, a escritora pediu para conhecer a avó da pessoa. Quando chegou lá, a tal mulher tirou um livro da estante e disse que contava a história para os filhos, ela mesma acreditando ter acontecido (é tipo a versão antiga de “se tá na internet é verdade”). E é isso. Aqui em Sobral várias pessoas pensam não se tratar de ficção. E vejo no texto do Domingos Olímpio (já sob influência do Realismo) um interesse em mostrar a cidade e seus personagens (muitos deles realmente estiveram aqui) buscando tornar tudo real. Uma questão que encontrei em outros artigos científicos sobre o livro foi: estaria o escritor tentando criar seu “Rômulo e Remo sobralense”? Essa linha tênue entre realidade e ficção (e a ligação com a cidade) é um elemento massa de explorar (de alguma forma foi uma das coisas que me fez querer adaptar o livro). Pensei em usar Raulino para conduzir isso, utilizando seus causos de uma forma diferente da história, quase como devaneios.
 
Vale falar um pouco sobre as personagens centrais.

Luzia


“A extraordinária mulher, que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de algodãozinho, cujas curelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios do sol e da poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras de relva virente e flores odorosas. Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de trabalho.” (Luzia-Homem, Domingos Olímpio)
 
Como trabalhar uma personagem que é chamada de “Luzia-Homem” e é identificada pelo autor como extremamente masculina durante boa parte da trama, mas ao mesmo tempo desperta interesse sexual não só em dois homens heterossexuais, mas em outros pela trama? É uma parada muito curiosa para uma obra de 1903 e deixa a história muito contemporânea. De qualquer forma, penso Luzia como uma típica cabocla cearense, com uma etnia próxima à indígena. Uma pista que me leva para esse caminho é sua origem no município de Ipu, berço dos Tabajaras, grupo do qual inclusive fazia parte Iracema, de José de Alencar (seria Luzia descendente da índia mais famosa da literatura cearense?). Pelas descrições de Domingos Olímpio, acho que seria errôneo trazer em seu corpo apenas características de etnias indígenas. Penso nela como uma misturinha mesmo, como são os sobralenses.
 
Há quem veja uma certa descoberta da feminilidade de Luzia no decorrer da história (me ajude com isso [apelo direcionado à Debora]). Gostaria de encobri-la mais no início e desnudá-la no decorrer da trama (nos sentidos físico e psicológico). Há alguns contrastes interessantes na narrativa para mostrar o cenário nessa evolução, afinal as primeiras descrições são quentes, no esforço da construção da penitenciária, até o findar da história, no meio à sempre verde e fértil Serra da Meruoca (que em um texto satírico sobre Sobral foi descrita como os alpes sobralenses).

“dura, indomável, aparentemente incapaz de verdejar em mostras de felicidade. Caem as primeiras chuvas: e a terra se cobre de riquezas. Vence Luzia os recalques de sua natureza sertaneja, ama; ei-la a revelar seus sentimentos femininos, puros, naturais”
Miécio Tati
 

Teresinha


“loura, delgada e grácil, de olhar petulante e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata amorosa”
(Luzia-Homem, Domingos Olímpio)


Teresinha se enxerga como um final possível para Luzia, como um aviso de como as coisas serão se algo der errado. É assim que ela se apresenta, tentando impedir que a protagonista “chegue aonde ela chegou”. É uma síntese da mulher durante o período da história, embora ela exerça muito sua própria vontade, fugindo da família, por exemplo. Essas marcas de vida estão no seu corpo, que é como ela justifica sua magreza, suas sardas e seus “peitos murchos”. É DE LONGE minha personagem favorita na história.
 
Ah, e como eu poderia esquecer essa análise apurada da relação Luzia-Teresinha, que eu tentarei fazer guiar meu texto:

“A impressão que tive, até agora, é como se a Luzia fosse a dimensão da mulher pura, imaculada, inocente (por isso tão forte e destemida) e a Teresinha fosse a dimensão mundana, da experiência, de conhecer como as pessoas realmente são (as coisas que ela passou antes de chegar lá e ela ter tido a iniciativa de investigar e buscar uma solução pro caso do Alexandre, sem informar tudo à Luzia, como se ela fosse a responsável pelo trabalho sujo). Elas são a mulher idealizada e a mulher mundana, porém boa de coração, porque sua alma foi lavada pelo sofrimento que viveu. Vítima das circunstâncias, Teresinha pode sujar as mãos para poupar a Luzia do trabalho sujo. É quase que uma guardiã, uma mãe também, que reconhece a inocência dela e se apropria da tarefa de proteger e cuidar da Luzia. Essa coisa que a gente tem na nossa cultura nordestina mesmo da mulher servindo sempre alguém: a filha que cuida da mãe, a mulher que cuida de outra mulher, que cuida do homem amado, a gente vê tudo isso lá. E eu vejo isso muito presente nas mulheres da minha família também.”
(Débora Santos, estudiosa da amizade das mulheres, pelo WhatsApp)
 
 
Primeiros estudos de Teresinha, por Débora Santos

 
x x x
 
Enfim, isso é só um pouquinho dessa etapa do trabalho.
 
Convido você a conhecer Luzia comprando no link abaixo:
 

E a pergunta importante agora é: já leu Luzia? Ajuda MUITO se você divulgar em suas redes sociais ou deixar uma avaliação para o livro no Goodreads ou no Skoob. É só clicar nos links aí atrás para ir para a página do livro.

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2 comentários:

Regis Torquato Tavares disse...

Que maravilha essa bíblia! Obrigado por compartilhar. Fiquei bem curioso quanto à história da Comissão das Borboletas. Ela foi tirada de algum diário de exploração dos integrantes, é da obra de Domingos Olímpio ou é algum causo sobralense?

Parabéns pelo roteiro.

Zé Wellington disse...

Olá, Regis! A Imperial Comissão Científica e Comissão Exploradora das províncias do Norte, vulgarmente chamada de Comissão das Borboletas, passou mesmo pelo Ceará no século XIX. Em Luzia-Homem ela é apenas citada num causo do personagem Raulino (que está disponível como extra na HQ). Há bastante material disponível sobre a Comissão na internet, incluindo vários livros a respeito.